quinta-feira, 27 de março de 2008

Presente de flor





Escolheu o vestido lilás que enchia o ar de nobreza. Colocou as meias-finas. Enfeitou-se com cuidado. Encaracolou levemente os cabelos, com paciência e devoção. Amarrou o laço nas costas, era grande como de princesa. E podia ver-se assim: uma princesa.
Abriu a caixinha de música e ouviu aquela canção doce enquanto escolhia seus brincos. Aquela canção se tornou única, se tornou tema. Ele talvez nunca saberia disso, mas como ela a ouvira hoje, e tudo o que vivesse hoje, a marcaria para sempre. Nem sabia se existia letra nesse chiado de música, mas aos seus ouvidos soava como bela o suficiente para desenhar-lhe um sorriso. Os brincos eram harmoniosos com o seu conjunto de delicadeza, e a conferiam um brilho doce, um sorriso bonito. O perfume era a fragância colhida das flores. O hidratante amaciava aquela pele nova e viva. Abriu a gaveta dos sapatos, e, depois de muito procurar, conseguiu encontrar exatamente o que precisava: sapatos delicados e seguros, capazes de ajudá-la nesse caminho de ansiedade, caminho de vontade de chegar, caminho que a levaria até ele. Não bastava todo o preparo sem a caminhada, precisava prosseguir. Pois, havia acordado só pra levar até ele aquela flor.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Corpo de menina


No peito, a dor da obrigação de viver se instalou naquele que fora tão vivaz um dia. Suas mãos já não eram tão macias, não mais aquele aspecto hidratado e vivo, antes exibia sua falta de cuidado e amor próprio, exibia sua necessidade de cuidado. Seu olhar perdera o antigo brilho de menina, o brilho de estrelas. Sua pele expurgava sua culpa, escancarava a dor latente, a dor paciente que persistia em morar no seu endereço. As unhas eram fracas e curtas, ali estavam expostas suas lentes. Lentes que lhe permitiam enxergar a vida, e a enxergava com demasiada ansiedade. Roia-as compulsivamente, mordia as pontas dos dedos como num ato insano, uma vontade incontrolável de diminuir a angústia do tempo, a angústia da hora, a angústia de ter esperado, a angústia imensa de ter errado. Seus pés andavam menos, queriam menos, traçavam menos caminhos, estavam cansados. Estavam descuidados. Perderam a trilha da promessa de prosseguir, perderam-se no caminho, esqueceram-se da simbologia das sandálias, das que remetiam a sua missão, a missão de caminhar. Sua boca não se saciava facilmente, precisava de muita água, precisava de alimento, e, em todo tempo. Tinha necessidade de carinho, de atenção, de cuidado. Seu cabelo estava ralo, suas bochechas caídas e ombros como que se arrastando, apontando para baixo. Seu corpo clamava por inteiro, seu corpo exalava por inteiro, sua complexidade de ser humano cantava em uníssono a melodia mais triste do seu coração, a melodia do seu desespero. Desespero conformado e calmo, coração triste. Um desespero latente com o qual se acostumara a conviver.

Mas, ainda assim, havia amor. Amavam tanto essa mulher triste. Amavam-na e pronto. Queriam apenas a garantia de tê-la por perto, de vê-la sorrir. Amavam-na com o amor mais puro. Amavam-na como uma flor, e a tratavam assim, com delicadeza, com leveza, como menina. Ainda viam aquela menina que brincava com as borboletas e os passarinhos, a que trazia mel e gostava de cuidar das plantas. Lembravam com esperança da menina. Lembravam da mulher que cuidava da sua casa com carinho, que tinha gosto pela vida. Acreditavam que podia ter de volta o brilho dos olhos e da pele, a luz dos cabelos, o riso solto e genuíno. Ter de volta o antigo corpo de menina, o corpo que exalava vida.

Ela também tinha boas lembranças de si. E sentia todo esse clima de amor, sentia toda a áurea de paz que a cercavam. Percebia a sensibilidade e o cuidado dos que a amavam.

Mas o barulho vinha de dentro, e era ensurdecedor. O amor que inexistia era o seu próprio.
Precisava, urgentemente, deixar vir a cura.... deixar o amor vir para dentro, vir para si.
Mas enquanto não se abrisse para isto.... o barulho continuava, o corpo prosseguia gritando. E seu corpo de menina ficava cada vez mais distante.

terça-feira, 11 de março de 2008

Caminhada


Não há pegada alguma no chão
Não mais.
Não porque não tenha andado por ali
Andou e andou muito.

Olha pra trás e vê muitos vestígios
Passos firmes que um dia foram seus,
Passos de marcha,
Sim, ele já marchou um dia.

Agora não há passos,
As pegadas sumiram
Não há pés no chão
Não há chão
Há areia, e ela se mostra,
É movediça
Os passos agora afundam
Não mais pegadas.

Anda mais forte
Na tentativa de sair do instável,
Do chão que se fez seu,
E o desespero é latente.
O coração palpita.

.... Respira fundo e tenta se acalmar...

Observa, analisa
O chão
Percebe que fez o chão
Fez ser, assim, areia
Areia que se move.

Lembrou da marcha
Lembrou do ontem firme
Do chão seguro
Lembrou profundamente triste... não há mais chão!

Mas viu no espelho
Seus pés, suas sandálias
Os companheiros de marcha
Não o haviam deixado.

E ela também veio a sua mente
Ela que persistia em percorrer todo esse caminho ao seu lado
Ela que marchara com ele
Ela que o enchera de coragem

Ele a havia abandonado
E afundara.
Ela ainda batia na porta do peito,
Calmamente:
- Existe um lugar pra mim?
Ele ao cair em si, agora a vê tão perto, tão linda:
- Entre. Sempre existiu esse quarto aqui para você!

Não há chão ainda,
Mas não se afoga mais
A Esperança agora está no quarto
Ocupa todo o peito.
Reacendeu ali o amor,
Amor pela vida,
Amor pelas suas pegadas
Ele quer intensamente andar, quer viver!